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EU NÃO ESTOU LOUCA

Nos labirintos da mata e do corpo Pollyana Quintella “No meio do caminho de nossa vida / Encontrei-me numa selva obscura / Que a estrada reta fora perdida." Dante Alighieri, Inferno, Canto I É preciso coragem para entrar na mata, desvendar suas superfícies, se despir dos saberes prévios em busca de alguma transformação vertiginosa. É esse o anúncio que a primeira exposição individual de Juliana Lapa oferece. Entre diários, desenhos, fotografias e objetos, há um convite para o estranhamento de si. A princípio poderíamos supor que os desenhos em grafite da série Breu, produzidos desde 2015, são fruto de observação, uma vez que apresentam afinado apuro técnico e um grande repertório de detalhes. No entanto, são composições livres, imaginadas por Juliana. As tramas, galhos, troncos e entrelaçamentos elaboram um cenário de mistério e medo, junto a um desejo pelo desvendamento. Para a artista, o trabalho aparece como fenômeno mágico e encantado, processo de vidência que instaura novas situações no mundo. Curiosamente, os Breus, embora ofereçam uma atmosfera de temor e mistério, são também um testemunho de intimidade e introspecção. O ponto de vista da artista nos coloca dentro da floresta. Não há distanciamento possível dos elementos, algo também reforçado pela grande escala, nos convidando a entrar na mata. Nesse caminho podemos evocar Gaston Bachelard. Em seu livro A Terra e os devaneios do repouso, o filósofo se debruça sobre imagens da beleza íntima da matéria, situações de afetividades inconscientes e subterrâneas. A gruta, a casa e o ventre, imagens de refúgio, são evocadas para oferecer tranquilidade íntima, repouso. Aqui, os Breus simultaneamente nos abraçam e nos apavoram, como redutos de segredos. Essa dualidade também se manifesta no Autorretrato no Breu, no qual Juliana se insere na gama de paisagens que construiu. Espectadora de sua própria façanha, ela aparece como alguém que não controla inteiramente aquilo que colocou no mundo. Na fotografia, o semblante da artista, com contornos indefinidos no meio do escuro, apresenta um misto de encantamento e confronto, hipnose e receio. Lembro Hilda Hilst, que sobre o mistério entendia: “Faria do meu rosto de parábola / rede de mel / ofício de magia”. Um rosto que transforma e é transformado. Juliana também relaciona o Breu ao Putrefactio, estágio do processo alquímico conhecido como “nigredo”, o escurecimento da matéria. No putrefactio ocorre a decomposição dos corpos orgânicos mortos. O caráter enigmático e ritualístico do trabalho é reforçado mais uma vez como uma espécie de visita às profundezas para um retorno renovador. A ideia de ritual também pode ser percebida nas outras fotografias, Centro da Terra e H. Na primeira, a artista aparece cavando um buraco na praia, em situação introspectiva, como se, ao cavar, conseguisse olhar para dentro de si e semear o mundo. Para nós, aparece ainda um índice de fogo através da fumaça. Na outra, a pequena chama aparece como uma intervenção pontual na mata, formando a quinta letra do alfabeto hebraico, a Hey. Em ambas, o vínculo com a terra anuncia segredos, confidências, revelações. Há uma linguagem cifrada que se apresenta para o iniciado, cuja intimidade com a terra alimenta. Os diários também expostos aparecem pontuando o caráter processual da pesquisa, o cotidiano do trabalho, as referências literárias, as imagens históricas, as anotações, experiências e tentativas que atravessam a elaboração de uma obra. No entanto, são eles mesmos objetos de atenção, produtos em si. Em muitos desenhos, o corpo da mulher aparece como assunto central, em situações surreais que envolvem animais, espíritos, lanças. No entanto, Juliana não está lidando com um ideal ocidental de mulher, segundo orientações neuróticas e castradoras, mas sim com um arquétipo mais antigo, que vincula o gênero a um lugar de vigor e poder. O título da exposição, “Eu não estou louca”, aparece como negação da postura que tende a depreciar delírios femininos, reafirmando, ao contrário, a potência vital de sua imaginação, seu lugar de vidência possível e acesso a outros saberes. Nessa direção, Juliana se apoia em Éliphas Lévi, mago francês do século XIX, que afirmou que “Imaginar é ver”. Em Cometa errante, por exemplo, trechos do autor também aparecem transcritos nas flechas que atravessam o corpo de uma mulher firme e distraída. As flechas, embora lhe atravessem, parecem também armas suas, não lhe derrubam. A Mulher Medonha, que dá título a outro desenho, é esse ser que está constantemente escapando de qualquer tentativa de captura, se reinventando e sobrevivendo diariamente. Lembro de Virginie Despendes que, na Teoria King Kong, diz: “Essa mulher [ocidental, coerente, perfeita] com a qual deveríamos nos esforçar para parecer, devo dizer que jamais a conheci, em lugar algum. Acredito até que ela nem mesmo exista”. Alinhado a isso, o trabalho de Juliana Lapa vem nos lembrar que medonhas somos todas, e é no estranhamento que reside nossa força, apesar dos temores e aflições. É de dentro do Breu, essa situação informe, de visibilidade difícil, que sairá uma nova configuração possível. Assim queremos e assim seguimos.

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Performance - ritual de limpeza e fechamento da exposição - Juliana Lapa, Marie Carange, Vi Brasil.

Exposição individual de Juliana Lapa na Torre Malakoff em Recife, 2018

Texto de Pollyana Quintella

Audiodescrição das obras: Liliana Tavares, Comacessibilidade

Educativo Vi Brasil

Produção Rose Lima

Diagramação Clara Moreira

Fotografia Marcelo Vidal

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